Moral e Política

Moral e Política

Manuela Franco
Lisboa, 19 de Julho de 2000

A reunificação da Alemanha e o fim da União Soviética permitiram aos Aliados dar conclusão a uma série de questões que a Guerra Fria tinha deixado em suspenso. Desde a Queda do Muro, as premissas da reinvenção da Europa vêm sendo formuladas à luz do esforço moral exigido à compreensão dos desastres da II Guerra Mundial e do totalitarismo soviético que lhe sobreviveu. Melhor ou pior, assistiu-se a um reequacionar da questão da moralidade e da política, tanto nas relações entre os Estados como nas relações entre estes e os direitos individuais; e os Direitos do Homem ganharam claramente terreno ao Estado Nacional.

O extermínio industrial dos judeus é uma dessas questões. Não sendo compreensível, porque o mal absoluto não e susceptível de racionalização, o Holocausto permanece fora do domínio do concebível, apesar do estatuto de pária reservado ao judeu por milénio e meio de cristianismo. Está porém inequivocamente documentado pela pesquisa histórica sobre todo o aparelho legal e logístico que preparou e apoiou as políticas nazis, desde a simples perseguição à espoliação, desde a privação dos atributos de ser social, como a do nome próprio, até ao tratamento como gado para abate. O processo internacional de reconhecimento de danos a que presentemente se assiste e, acima de tudo, o reconhecimento formal de que os factos se passaram, de que houve crime contra as pessoas: os representantes dos culpados pagam e os representantes das vítimas dão quitação.

Para além da Alemanha, muitos países participaram, de diversas maneiras, da guerra imposta pelo totalitarismo alemão, merecendo alguns tratamentos de especial consideração por serem, nas palavras da burocracia do Reich “amigos ou aliados da Alemanha”, isto e, países ocupados, aliados ou neutros. E como o esforço de guerra alemão esteve indissociavelmente ligado à “solução final” da Questão Judaica na Europa, esses países foram agora convidados a reavaliar o seu comportamento durante a II Guerra. Uma oferta irrecusável, sobretudo perante a consagração do modelo democrático como paradigma da organização mais favorável ao Homem, agora, afinal, a medida de todas as coisas.

Portugal participou na II Guerra Mundial como neutro. A lúcida apreciação das condicionantes internas e internacionais, especialmente a experiência da recente guerra civil espanhola, a posição geoestratégica da península ibérica, aconselhavam-no. E, em 1939, a neutralidade era ainda um conceito político-jurídico de aplicação relativamente simples. Mas, para além do soez plano de conquistas territoriais e de esferas de influência, a Alemanha movia uma guerra ideológica, total. Perante a aplicação dos mandamentos do movimento totalitário, o estabelecer em terras conquistadas da vassalagem à mundivisão nazi, a destruição segura dos valores em que a civilização ocidental até então tinha funcionado, a semântica da neutralidade foi-se alterando. Tornou-se uma posição de difícil gestão, tanto mais quanta Portugal era governado em regime autoritário, por um ditador que operava sobre certezas, no caso um conjunto de princípios feitos à medida de um Mundo que a própria guerra se encarregava de destruir.

As certezas são inimigas da verdade. No caso português, escondida pela auto-satisfação de nos termos poupado ao conflito, quem sabe até termos ganho algum dinheiro com ele, a verdade ficou por captar até ao fim da guerra, com o luto oficial por Hitler e, até aos nossos dias, com a apreciação legalista, apolítica e amoral que ainda prevalece sobre a neutralidade portuguesa. Na equidistância perante os dois lados, no não ter compreendido que vencedores e vencidos não se equivaleriam, que o Estado nazi não comportava regeneração, em suma, no fugir a tomar partido no conflito político e moral postulado na II Guerra Mundial, Salazar remeteu a nação portuguesa para a periferia da modernidade e para fora da história da Europa. A democracia demoraria mais trinta anos a chegar a Portugal que, só então, reencontraria o caminho político de regresso à Europa.

Um problema de refugiados

Sabe-se que durante os anos da II Guerra Mundial passaram por Portugal dezenas de milhares de refugiados, sobretudo judeus. Muitas vidas foram poupadas pela actuação decidida de três diplomatas portugueses documentada na presente exposição: Aristides de Sousa Mendes, Cônsul de Portugal em Bordéus, Carlos de Sampaio Garrido, Ministro de Portugal na Hungria e Alberto Teixeira Branquinho, Encarregado de Negócios de Portugal em Budapeste. O primeiro, em Junho de 1940, elevou-se pela força do seu carácter acima do pânico dominante e, agindo por decisão e risco individual, no momento certo, abriu as portas de Portugal aos fugidos de França. Seria esmagado pelas certezas de um Salazar vencido pela criação de um facto político cuja reversão arrastaria questões complicadas de enquadrar nos parâmetros escolhidos para a neutralidade portuguesa. Os segundos, em 1944, confrontados com a ocupação alemã da Hungria e o programa acelerado de eliminação dos húngaros judeus, empenharam o seu sentido de valores e a sua coragem na concretização de uma operação de salvamento programada pelos representantes dos países neutros em Budapeste, e que contou com a aprovação e o envolvimento activo de Lisboa. Humana e politicamente de natureza e dimensão muito diferentes, estes dois episódios ilustram bem o evoluir da política portuguesa quanto aos refugiados do nazismo: uma atitude inicial muito restritiva, que se foi flexibilizando progressivamente com o andar da guerra, chegando mesmo a assumir formas de acção positiva quando o regime começou a ter por certa a derrota alemã e a imaginar que a neutralidade proporcionaria uma plataforma de protagonismo político no pós-guerra.

A atitude inicial harmonizava-se com as políticas restritivas com que os demais países da Europa Ocidental procuravam suster a desestabilização provocada pela expulsão dos judeus da comunidade nacional alemã. Entre 1935 e 1938, as deslocações em massa na Europa apareciam mais como uma questão de refugiados, com os Estados nacionais a recusarem-se a aceitar participar na solução de um problema criado por uma política irresponsável de um dos seus pares: havia uma criação de transtornos e despesas a terceiros que o culpado – o Reich – se recusava a pagar, com a agravante de se ter previamente apropriado dos bens dos expulsos. Em segundo lugar, estes expulsos não eram problema temporário: sem hipótese de retorno, privados de nacionalidade, quem os acolhesse deveria estar preparado para os integrar na comunidade nacional. E aí estava o terceiro problema: eram judeus.

Perante a internacionalização da questão judaica, Portugal não prescindiu do atributo soberano de proteger os seus nacionais, nem do direito de asilo, nem da prerrogativa de o conceder nos termos em que entendesse, isto é, de forma a que não fossem perturbados o viver da nação e a unidade do Estado. O regime português marcou, desde cedo, a diferença entre “os nacionais de raça judaica”, assumindo a protecção dos respectivos interesses na Alemanha, e os refugiados, problema político que não queria ter. “Portugal não tem razões de ordem política ou rácica que o levem a ocupar-se deste problema que nos seus territórios não existe, mas nos quais por isso mesmo, não está disposto a fazê-lo nascer”, escrevia-se no Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), em 1939. O judeu estrangeiro foi declarado moral e politicamente indesejável pela Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), que procurou restringir ao máximo a sua entrada em Portugal.

Uma política de fronteiras

Como as suas congéneres europeias, a polícia de segurança portuguesa foi instrumental na definição da política de entradas, que nos chega documentada por uma série de circulares de instruções quanto à emissão de vistos, enviadas pelo MNE às missões diplomáticas e aos serviços consulares no estrangeiro. Desde 1936 – com a Guerra de Espanha, e o espectro de uma revolução soviética no país vizinho, a ameaçar a independência nacional e a sobrevivência do regime – que a política de vistos assumia importância como um instrumento activo de defesa nacional. Nesse ano fora barrada a entrada em Portugal a qualquer russo e os apátridas e indivíduos documentados por instituições ou países de que não fossem nacionais – isto é, os passaportes Nansen – deixavam de poder receber vistos de residência, podendo os consulados portugueses dar apenas vistos de turismo por trinta dias, renováveis até 60 dias.

Entretanto, por força de uma série de acordos celebrados no final dos anos vinte, os nacionais de muitos países europeus, incluindo os alemães, podiam entrar em Portugal sem visto, o que facilitara a instalação aqui de umas centenas de judeus alemães. Porém, a PVDE queixava-se ao MNE do número de alemães que chegava com passaportes de curta validade que o Consulado alemão se recusava a revalidar: “tais recusas são feitas apenas a judeus, mas as medidas adoptadas pela polícia são de ordem geral dada a dificuldade em distinguir o alemão judeu dos restantes”. Os acordos de vistos só viriam a ser cancelados em Setembro/Outubro de 1939, mas o problema seria atalhado bem antes, em 1938. Depois da anexação da Áustria e do fracasso da Conferência de Evian, o MNE português emitia, a 8 de Outubro, a Circular 10: “respondendo a reiteradas consultas feitas por diversos consulados acerca do tratamento que aos emigrantes judeus é concedido em Portugal” comunicava-lhes que “não é permitida a fixação em Portugal dos referidos emigrantes, sendo-lhes concedida apenas a entrada como turistas, mas só pelo prazo de 30 dias”.

A seguir à queda da Polónia, as condições únicas de país neutro, fora da zona de influência alemã, com porto atlântico operacional, foram objectivamente enquadradas por Salazar na determinação de que Portugal seria um país de trânsito. A Circular 14, de 11 de Novembro de 1939, enviada aos postos no estrangeiro “para prevenir quanto possível abusos e práticas de facilidades que a PVDE entende inconvenientes ou perigosas” estabelecia um rol de casos em que os cônsules não poderiam conceder vistos consulares sem prévia consulta ao MNE: os estrangeiros de nacionalidade indefinida, contestada ou em litígio, os que apresentassem nos seus passaportes a declaração ou qualquer sinal de não poderem regressar livremente ao país de onde provinham, ou os judeus expulsos dos países da sua nacionalidade ou daqueles de onde provinham. Exceptuava no entanto claramente que “os cônsules terão porém muito cuidado em não embaraçar a vinda a Lisboa dos passageiros que se destinam a outros países e especialmente as carreiras aéreas transatlânticas ou para o Oriente”.

A partir do início de 1940 a correspondência entre o MNE e a PVDE e o MNE e as missões diplomáticas e consulados é claramente restritiva quanto à vinda de judeus a Portugal, independentemente da nacionalidade. E, na cadência do avanço alemão para oeste, Lisboa acelerava o ritmo a que emitia novas instruções visando limitar as entradas e centralizar as decisões: a 23 de Abril, os cônsules na Holanda eram avisados para, quando lhes fossem solicitados vistos em passaportes, averiguarem escrupulosamente se se tratava de judeus, sendo que “nenhum visto em passaportes judeus poderia ser concedido sem autorização do MNE” o qual respondia ao desejo da PVDE de “se evitar a entrada em Portugal de indivíduos dessa qualidade”. A 17 de Maio, a Circular Telegráfica 17 determinava aos consulados que “em caso algum” poderiam conceder vistos em passaportes sem prévia autorização” do MNE e, uma semana depois, a 24, nova circular explicava aos cônsules que não se desejava restringir o trânsito dos estrangeiros que regressassem aos seus países de origem, mas importava evitar dar vistos de trânsito que se transformassem em vistos de residência.

O carimbo parecia ser uma arma eficaz na defesa da estabilidade, necessária à prossecução da obra de “restauração nacional”. Mas eis que, com a queda da França, ao grande número de refugiados que ali encontrara abrigo só restava a saída pelos Pirinéus. A Espanha estava destruída, e deixava passar quem quer que apresentasse visto de trânsito ou de residência em Portugal. Nesse momento crítico da guerra, no paroxismo de ansiedade sobre as possibilidades de salvaguardar a neutralidade, o Governo português pôs em vigor novas restrições. A 14 de Junho – o dia da entrada dos alemães em Paris, e dois dias depois da Espanha ter saído da neutralidade para a não beligerância – a Circular Telegráfica 23 estabelecia como regra geral que os pedidos de vistos seriam dirigidos directamente pelos consulados à PVDE, reservando ao MNE os casos especiais e permitindo apenas aos cônsules dar vistos de trânsito sem autorização prévia a quem apresentasse visto para um terceiro país e bilhete de embarque.

Aristides de Sousa Mendes, Cônsul de Portugal em Bordéus

Todas estas instruções corporizavam o empenho das autoridades portuguesas em evitar males. Quando Aristides de Sousa Mendes tomou sobre si a responsabilidade de valer a quantos pudesse de entre os milhares em fuga desordenada ante o avanço alemão pela França, dando-lhes um visto para transpor os Pirinéus, contrariava instruções, decerto. Mas, fundamentalmente, punha em causa uma concepção política e confrontava Lisboa com a criação do mais difícil dos precedentes, o humanitário. Ali, em Bordéus, se formou a imagem de “Portugal, porto de abrigo” que até hoje perdura.

Não saberemos nunca quantos vistos deu Aristides Sousa Mendes. O LIVRO DE VISTOS DE BORDÉUS documenta eloquentemente a situação. Entre Novembro de 1939 e Abril de 1940, regista uma média de 20 vistos concedidos por mês. Em Maio de 1940, a média é de 8 vistos por dia. Entre 17 e 30 de Maio a média diária sobe a 160. Em Junho, até dia 10, inclusive, o Consulado visa por junto 59 passaportes. No dia 11 regista 67 vistos; dia 12, 47; dia 13, 6; dia 14, 173; dia 15, 112; dia 16, 40; dia 17, 247; dia 18, 216; dias 19 a 22, uma média de 350, registados numa preocupação de ordem a que não era possível dar execução, pois deixam de ser mencionados nomes e por fim deixa de haver qualquer registo. A baixa de número do dia 13 mostra provavelmente o número de autorizações recebidas de Lisboa; e a do dia 16 assinala o momento em que o Cônsul, exausto pelas circunstâncias, se recolheu e terá tomado a decisão de não esperar pelas autorizações de Lisboa para dar passagem aos refugiados. Não há registo dos vistos concedidos sob a autoridade de Aristides de Sousa Mendes no Consulado de Portugal em Baiona, nem em Hendaia, na rua ou na fronteira.

Todo o episódio se desenrolou entre os dias 17 e 24 de Junho. A 20 de Junho, Lisboa acordava para o problema com um Aide Memóire da Embaixada britânica em Lisboa, alegando que o Cônsul de Portugal em Bordéus estaria a cobrar indevidamente dinheiro “para a caridade portuguesa” por vistos dados fora das horas de serviço. Neste mesmo dia, um telegrama do MNE mandava o Ministro de Portugal em França averiguar e tomar as mais enérgicas providências quanto ao que se passasse em Bordéus. Datada do mesmo dia, o Embaixador de Portugal em Madrid, enviava uma carta a Salazar informando que no dia seguinte iria a Baiona falar como Cônsul. A 21 de Junho chegava ao MNE um telegrama de Baiona dando conta das ordens dadas por Sousa Mendes para visar passaportes indiscriminadamente e de graça. De imediato seguia para Baiona Lopo Simeão, um funcionário consular em missão especial de saneamento, o qual, a 23 de Junho, mandava um telegrama sugerindo que o Governo português, por forma a alijar “inteiramente sua responsabilidade”, castigasse imediatamente o Cônsul em Bordéus. No terreno, Pedro Teotónio Pereira, Embaixador de Portugal em Madrid e homem da maior confiança de Salazar, desmultiplicava-se em contactos com as autoridades espanholas da fronteira e em Madrid, demarcando bem o Governo português da acção do seu Cônsul e anulando todos os vistos a partir de 24 de Junho. Nesse mesmo dia 24 seguiam ordens para o Ministro de Portugal em França mandando Aristides de Sousa Mendes regressar de imediato a Lisboa. A 2 de Julho, Salazar informava o seu Embaixador em Londres que afastara o Cônsul do serviço e, a 4 de Julho, determinava a instauração do processo disciplinar.
“Razões de humanidade não distinguem raças nem nacionalidades”, diria em sua defesa Aristides Sousa Mendes. Mas o Governo português não era da mesma opinião, muito menos na semana em que a Espanha passava à não beligerância, as divisões alemãs se concentravam nos Pirinéus, e já se antevia o Reich em Gibraltar. Julgado em processo administrativo, sem hipótese de recurso, Aristides de Sousa Mendes era banido do serviço público – o que no Estado autoritário e corporativo português queria dizer, basicamente, afastado da vida activa.

Ao agir no plano do real, acudindo na medida das suas possibilidades à situação dramática dos milhares de pessoas em perigo, sabendo que teria de enfrentar uma hierarquia que considerava o diplomata um militar à paisana, Aristides de Sousa Mendes gritava para Lisboa que a liberdade de consciência não é assunto de conveniência. O crime de Sousa Mendes fora tornar claro ao regime que as arquitecturas políticas sobre que assentava o seu perfil internacional e as suas linhas de defesa burocrática eram, realmente, apenas isso, construções.

O diplomata foi punido mas o “crime” foi abafado. E a maior parte das pessoas que se apresentaram às fronteiras portuguesas foram admitidas, na certeza de que a Espanha não as aceitaria de volta. Pretender que nada acontecera era a maneira mais expedita de reduzir o impacto do precedente e de lidar com a situação desprestigiante de nem o Ministério do Interior nem o Ministério dos Negócios Estrangeiros terem sabido evitar o acontecido. E a habilidade do regime em transformar o vício em virtude ressalta de um editorial do Diário de Notícias de 14 de Agosto, uma lauda ao humanismo português, que Aristides de Sousa Mendes recortou e enviou ao MNE para ser apenso à sua defesa: “Os serviços do Ministério do Interior – honra lhes seja feita – funcionaram por uma forma perfeita. Os elogios à nossa acção, não apenas interna, mas nas fronteiras, onde ela era particularmente difícil, são gerais. Todas essas referências se endereçam (é justo dizê-lo) à organização da nossa polícia internacional e ao seu ilustre Director, o Capitão Agostinho Lourenço. Graças a essas directrizes, a essa superior orientação e a essa junção de actividades, o coração português pôde revelar-se mais uma vez perante o Mundo, tanto quanto as circunstâncias o permitiam, na plenitude da sua grandeza ideal – que foi sempre a maior das suas grandezas”.

Sensivelmente na mesma data, um relato do Ministro de França em Portugal informava para Vichy, de fonte segura, que “a afluência ao território português de refugiados de todas as nacionalidades causa uma grande inquietação ao Governo português, que já tomou medidas muito severas quanto aos checos e polacos. A ameaça de perda de nacionalidade que a lei de 23 de Julho faz pairar sobre todos os refugiados franceses, agrava ainda mais esta preocupação – preocupando-se as autoridades em não assumir o encargo de potenciais apátridas que não poderão devolver aos respectivos países de origem”. E referindo-se aos refugiados franceses, cerca de 600, dizia: “os interessados na maior parte estavam munidos de vistos de entrada emitidos pelo Cônsul de Portugal em Bordéus, mas como este funcionário foi demitido, as autoridades portuguesas não reconhecem validade aos vistos passados por ele. Os refugiados por conseguinte são considerados como tendo entrado em Portugal sem papéis, os passaportes retidos pela polícia e só devolvidos ao seu proprietário, a quem foi fixada residência, no momento em que abandona o país, depois de regularizada a respectiva situação”. Meses mais tarde, em Novembro, o Ministro da França respondia a um pedido de informações do Ministério do Interior de Vichy que “o Governo português não tinha tomado novas medidas para interditar aos israelitas a entrada no seu território, mas os vistos de entrada em Portugal seriam cada vez menos concedidos aos israelitas que não tivessem os documentos indispensáveis para seguir viagem para outro país”. Era fidedigna a informação: em Dezembro de 1940, a Circular Telegráfica 29 submetia a concessão de vistos à responsabilidade da PVDE, revogando a possibilidade de, mesmo nos passaportes de pessoas destinadas a terceiros países, os cônsules poderem dar vistos de trânsito sem autorização prévia.

As viragens da Guerra

As preocupações de Salazar com o equilíbrio ibérico, a importância da aliança com Grã-Bretanha, o evitar que o regime franquista se desviasse da política externa tradicional espanhola para se alinhar duradouramente com os seus aliados alemães e italianos, sustentaram esforços diplomáticos conjuntos de Portugal, da Grã-Bretanha, e dos Estados Unidos da América. Foram manobras fundamentais no travar das oscilações espanholas, perante o crescendo das pressões alemãs, e defender o status quo na Europa do sudoeste e na África do Norte, garantido pela neutralidade da Península Ibérica e da França de Vichy. Com a decisão de avançar para a URSS, a Alemanha passava a ser parte interessada na neutralidade dos Estados da Península Ibérica, que se tornava decisiva para furar o bloqueio económico e para garantir o abastecimento de materiais estratégicos importantes. Em 21 de Junho de 1941, quando os exércitos do Eixo avançaram contra a URSS, afastavam-se os piores riscos de uma ofensiva alemã contra a Península.

Em 1942, a Espanha aproximava-se lentamente da ideia de neutralidade geométrica. O desembarque aliado no Norte de África, em Novembro, trouxe a neutralização efectiva da Península Ibérica e, em Dezembro, fez-se o “bloco peninsular’’. A partir daqui Portugal começou a preparar a sua participação no bloco dos vencedores. A neutralidade geométrica e o primado da aliança peninsular foram substituídos pela neutralidade activa. Em finais de 1942, o Secretário dos Negócios Estrangeiros inglês Anthony Eden declarou nos Comuns que os nazis “estavam a concretizar a repetida ameaça de Hitler de exterminar os judeus da Europa” e os EUA declararam que esses crimes seriam vingados. Em Abril de 1943, a Conferência de Bermuda reconheceu que seria preciso fazer qualquer coisa pelos “refugiados”. Mussolini caiu em 25 de Julho. E Portugal daria um passo em frente com os acordos sucessivos com a Grã-Bretanha e os EUA e, em Outubro de 1943, no acordo para o uso dos Açores pelos Aliados.

Ao longo deste período, desde a queda de Paris, as organizações de auxílio aos refugiados ali sediadas, sobretudo as judaicas – American Joint Distribution Committee (JDC), Hias, Hicem – tinham-se reinstalado em Portugal, onde funcionavam, desde Julho de 1940, sob a égide institucional da Secção de Refugiados da Comunidade lsraelita de Lisboa. A eficiência destas organizações no financiamento das despesas criadas pelo trânsito de refugiados e no garantir do respectivo escoamento para terceiros países, seria de uma importância vital no acalmar das preocupações portuguesas, contribuindo decisivamente para a flexibilização progressiva da política de refugiados.

O caso da Hungria: Carlos Sampaio Garrido e Alberto Teixeira Branquinho

Quando, em Março de 1944, os alemães ocuparam a Hungria, já se sabia que a Alemanha ia perder a guerra, já não havia maneira de ignorar o destino reservado aos judeus e, quando começaram as movimentações para a eliminação dos húngaros judeus, vários países se mobilizaram para tentar impedi-la. Os americanos, através do recém criado War Refugee Board advertiram o Governo húngaro repetidamente para que não colaborasse em politicas persecutórias, a judeus ou a outros, e fizeram diligências junto de países neutros no sentido da protecção dos judeus da Hungria.

Entre Março e Dezembro, o Governo húngaro – profundamente dividido, dirigido alternadamente por dois Primeiros-Ministros pró e por um relutante aos alemães, com os russos nas fronteiras e altamente pressionado pelos nazis – oscilava no zelo com que dispunha da “sua” questão judaica. Nestas oscilações foi possível aos representantes diplomáticos dos países neutros conjugarem os seus esforços num programa de salvamento dos judeus de Budapeste que, com a ajuda dos bombardeamentos aliados, contribuiu para dificultar a primeira investida de deportações, em Julho. A partir de finais de Agosto, na impossibilidade de suster a determinação alemã de eliminar os judeus de Budapeste, este esforço traduziu-se na emissão de milhares de documentos de protecção suíços, suecos, portugueses, espanhóis e do Vaticano, em colaboração com a organização judaica Vaa’da, presidida por Otto Komoly.

O Governo português não pareceu ter dificuldades em autorizar a sua Legação em Budapeste a acompanhar os representantes dos países neutros nas acções de protecção a favor dos judeus húngaros, concedendo asilo diplomático, passaportes provisórios e/ou colectivos, na certeza de que a nacionalidade estava fora da questão e que os beneficiados se comprometiam a não invocar o passaporte português para pedir a cidadania portuguesa, aceitando que a validade dos documentos expirava no final de 1944.

Por esta altura tratava-se já de estar do lado de quem ia ganhar a guerra. E pairava uma ideia de aliança entre os neutros católicos – Espanha, Santa Sé e Portugal – para convencer os aliados a assinar uma paz separada com os alemães para evitar a destruição da Alemanha e travar o comunismo. Imediatamente a seguir à ocupação alemã, o Governo português, sensível às diligências dos Aliados de que o Governo Sztojay era um governo fantoche, resolveu diminuir a representação diplomática, mandando regressar a Lisboa o seu Ministro na Hungria e enviando um Encarregado de Negócios, para não dar a impressão da interrupção das relações diplomáticas e para marcar a diminuição de independência do Estado húngaro.

O Ministro Sampaio Garrido estava na Hungria desde 1939 e com certeza já tinha visto muito, que a perseguição aos judeus não fora uma novidade trazida ao regime do Regente Horthy pelos alemães. No meio do ambiente de terror criado com a entrada da Gestapo em Budapeste, Sampaio Garrido tomara a iniciativa de acolher à protecção da casa da Legação de Portugal um grupo de pessoas, provavelmente da sua amizade. Mas, no início de Maio, via-se forçado a relatar a Lisboa que a Legação fora assaltada pela Gestapo, e os seus hóspedes levados para a Polícia de Budapeste, donde tivera algum trabalho para os resgatar. O Governo de Lisboa, surpreendido pelas notícias, não se zangou. Chamando suavemente a atenção do seu Ministro para que “deveria” ter prevenido, o MNE assumiu desde o início a protecção concedida por Garrido aos asilados na Legação de Portugal.

Alberto Teixeira Branquinho assumia o cargo de Encarregado de Negócios em Budapeste a 5 de Junho e, com ele, a responsabilidade pela protecção dos “seus” refugiados. Quando a situação se complicou em Agosto, o novo Encarregado de Negócios, invocando a actuação do Ministro da Suécia em Budapeste (amigo pessoal de Teixeira de Sampaio, Secretário Geral do MNE), obteve de Lisboa a autorização para alargar a natureza e a quantidade da protecção portuguesa, sobretudo através da emissão dos Schutzpässe. Estes papéis de protecção de facto resguardaram muitos judeus até à altura em que o Regente Horthy foi deposto pelo nacional-socialista Szalasi, Primeiro-ministro e auto proclamado Vice Regente. Em finais de Outubro, Szalasi decidiu que só respeitaria papéis de protecção dos países que reconhecessem o seu Governo como legítimo. Nessa altura, o Governo português mandou retirar o Encarregado de Negócios.

A partir de 29 de Outubro, a representação portuguesa em Budapeste ficou entregue ao vice-cônsul, Jules Gulden que continuou a acompanhar os protegidos portugueses. Yehuda Bauer no seu livro “AMERICAN JEWRY AND THE HOLOCAUST – The American Jewish Joint Distribution Committee, 1939-1945” diz que “ Jules Gulden não só ofereceu varias centenas de vistos para Portugal como emitiu mais 1 200 papéis de protecção”. Na carta que, a 18 de Dezembro, já refugiado em Genebra, escreveu para o MNE, dando conta da situação que deixou em Budapeste, Jules Gulden não menciona o assunto.

Lisboa continuou a fazer diligências em Berlim para a protecção dos refugiados que ainda ficaram na Legação de Portugal e para os portadores de papéis de protecção portuguesa. Não se admitia desrespeito às prerrogativas da soberania. Oficialmente, a acção diplomática portuguesa na Hungria terá contribuído para salvar cerca de 1 000 pessoas.

Vidas Poupadas: Três Diplomatas Portugueses na II Guerra Mundial

Na escolha dos documentos patentes nesta exposição sobre a acção de três diplomatas portugueses guiamo-nos principalmente pela possibilidade de proporcionar um máximo de leitura directa de dois momentos reveladores da administração da neutralidade portuguesa.

No caso de Aristides de Sousa Mendes, os acontecimentos foram rápidos, as posições extremadas, e o material do processo que lhe foi movido mostra, mesmo ao leitor mais desprevenido, o quadro moral e político em que o drama se desenrolou. Limitamo-nos aqui a juntar alguns documentos que contribuem para contextuar o caso, tanto quanto às atitudes – antecedentes – das autoridades portuguesas perante a questão dos refugiados, como em conclusão, nos pareceu interessante mostrar o ponto de vista crítico da política de vistos de Lisboa que o Cônsul em Marselha, um diplomata completamente alheio ao processo Sousa Mendes, comunicava a Lisboa no final de 1940.

No caso da Hungria, a correspondência trocada entre Lisboa e as Legações de Portugal em Budapeste, em Berlim, e em Berna – onde Sampaio Garrido, saído da Hungria, passou quase todo o Verão de 1944 – permite seguir, às vezes dia a dia, um processo onde o empenho pessoal de dois diplomatas galvanizados pela arrogância do ocupante alemão e pelo terror das perseguições movidas aos judeus de Budapeste, encontrou eco numa Administração politicamente orientada para transformar em créditos na paz, uma neutralidade que entretanto se tornara incómoda.

Esperamos que a presente exposição possa ser uma achega para o concretizar da profecia feita por Salazar, a 18 de Maio de 1945, perante a Assembleia Nacional, no seu discurso “Portugal, a Guerra e a Paz”: “A História, serena e imparcial, como os literatos dizem que é, há-de um dia catalogar os nossos actos desta guerra e classificar a nossa neutralidade”.

Cada judeu traz na alma, com crença messiânica, um sonho, uma ambição feita de esperanças e ilusões [César dos Santos]